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Quinta, 18 Junho 2020 18:35

Quando o Luto Bate à nossa Porta – Liturgia para Ofício Fúnebre Virtual

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A Pandemia trouxe um estado de luto geral para todos nós, pois de alguma forma e em alguma medida todos perdemos alguma coisa. Muitos estão sem emprego e sem perspectiva de arrumar outra colocação. Outros tiveram a diminuição de salários ou de sua renda. Tem aqueles que viram seus projetos e oportunidades irem por água abaixo. A maioria de nós está separada, ainda que momentaneamente, do convívio das pessoas amadas. Estamos todos de luto.

Contudo, muitas pessoas pelo nosso país estão experimentando um luto muito maior e bem mais intenso do que esses que eu enumerei. Elas estão de luto porque perderam alguém, por causa da morte de um ente querido. Certamente que você conhece pelo nome alguém muito próximo que está vivenciando a dor do luto, seja alguém conhecido, um parente, alguma irmã ou irmão na fé, um vizinho.

A situação do luto se intensifica muito quando a morte é causada pelo Covid-19. E por que a dor é mais forte quando causada pelo Corona Vírus? Primeiro, porque interrompe o ciclo natural da vida que, sem essa doença, fluiria dentro da normalidade. Segundo, porque os parentes são impedidos de acompanhar seus queridos nos hospitais e, por isso, não podem confortá-los, nem animá-los e nos casos terminais, ficar com eles nos momentos finais de suas vidas e ouvir seus últimos desejos. Terceiro, porque o contágio impede que a família sepulte seu familiar de maneira digna, com o necessário ritual fúnebre, que simboliza a entrega do corpo à terra e a alma a Deus. A falta do rito cria uma sensação de que o morto permanece insepulto. Quarto, porque as pessoas assistem, muitas vezes de longe, o corpo ser colocado em uma vala comum aberta às pressas, cobertas de terra por uma retroescavadeira, gerando um sentimento de banalização da morte e desvalorização da vida.

Essas quatro razões são suficientes para mostrar o quanto a dor do luto, causada por Covid-19, é intensificada no coração dos que perderam pessoas amadas para a Pandemia.

Estou certo de que não podemos, e nem devemos, tentar tirar a dor dessas pessoas, pois isso é impossível e desaconselhável. Mas podemos, como pastores e pastoras, minimizar o sofrimento delas ajudando-as a atravessar o luto de uma maneira serena e significativa.

E como podemos fazer isso?

Antes de responder essa questão, devemos começar por entender o luto. As anotações que seguem são indicativos de uma aprendizagem sobre o luto que devemos aprofundar.

O luto é inevitável, não é uma fatalidade. A perda que sofremos de qualquer objeto do nosso amor faz parte do ciclo natural da vida. Perdas não são acidentes que estão fora das possibilidades certeiras da existência, pelo contrário, elas testificam nossa fragilidade diante do Universo e a nossa vulnerabilidade diante de tudo o que ameaça a vida, com a morte. Quem dera educássemos nossos filhos nessa compreensão.

O luto é um processo, não é um momento. Entenda que o luto não vem e passa rapidamente. Não! O luto pela perda de alguém é um processo longo e, por isso, qualquer tentativa de ajudar pessoas em sofrimento de luto deve ser colocada na perspectiva dessa duração. A duração do processo varia de pessoa para pessoa, mas o certo é que não é momentâneo como um soco no estômago pode ser.

O luto é constituído de fases, não é um único evento. Como a lua, o luto tem fases. A lua tem quatro e o luto tem cinco fases. E são bem conhecidas: a negação; a raiva; a negociação; o vazio; e a aceitação. Conhecer essas etapas nos ajuda a ter a sensibilidade para identificar por qual delas a pessoa está passando ou em qual delas a pessoa ficou presa. Esse conhecimento nos permite oferecer o remédio certo, na dosagem certa, no momento certo.

O luto é individual, não é coletivo. A morte de alguém deixa a família e os amigos de luto, como se fossem um coletivo. Apesar disso, cada membro da família e cada amiga ou amigo sente e sofre o luto à sua própria maneira, porque tiveram experiências e relacionamentos diferentes com o ente que se foi. Por isso, nada de generalizações. Uma palavra que pode servir para confortar a dor de um, pode não ser a mais indicada para aliviar a dor de outro.

O luto é doloroso, não é prazeroso. Não subestime a intensidade do sofrimento da pessoa enlutada, com expressões clichês como: Deus quis assim; ela estava sofrendo agora descansou; a vida é assim mesmo; você tem que reagir e outras palavras vazias de significado e eficácia. O silêncio é de ouro, esta é a regra dourada. Esteja em silêncio presente, como se diz, mostrando disponibilidade em auxiliar, caso a pessoa deseje e solicite ajuda.

O luto é transformador, não é destrutivo. A pessoa que passa pelo luto está passando por uma transformação, ainda que ela não saiba disso. Essa transformação é o caminho da simbolização, ou seja, ela se completa na medida que a pessoa consegue estabelecer um novo vínculo interior com o sujeito de sua afeição que morreu. Ele está ausente de corpo, sem dúvida, mas mora aqui dentro do meu peito para sempre. Quando isso se dá, a pessoa sente saudade com alegria, trazendo as melhores lembranças deste alguém a quem ela continua conectada.

Essas considerações que eu fiz nos ajudam a compreender melhor o luto e a planejar melhor nossa ação pastoral em meio à Pandemia, que tem ceifado muitas vidas e deixado muitas outras de luto. Elas também nos auxiliam a responder a pergunta que fiz: Como podemos ajudar as pessoas a passar pelo processo de luto? Como fazer isso?

Entre nossas muitas tarefas como pastoras e pastores do rebanho de Deus está o serviço de celebração do rito fúnebre. E como oferecer esse serviço durante o distanciamento social e a impossibilidade de estar presente no sepultamento? A resposta parece óbvia: Fazer o ritual online, se não houver outra possibilidade.

Se é assim, então quero oferecer uma liturgia fúnebre que seja viável de praticar mesmo a distância. Vou estruturar os elementos da liturgia em torno das seis características do luto que descrevi acima. Você pode utilizar as cinco fases do processo de luto, por exemplo ou outra forma que melhor convier a sua realidade. O desafio que faço, porém, é que você evite os “manuais” de liturgia, porque eles não foram pensados para ritos virtuais.

Liturgia para Ofício Fúnebre Virtual

Reúna virtualmente a família enlutada, pessoas da comunidade de fé, amigos e vizinhos, caso seja possível.

1. Faça uma acolhida – Dê as boas-vindas e diga para as pessoas o quanto elas são especiais e o quanto a presença delas é importante para a família do morto. Lembre-se de fazer isso com a solenidade que o momento exige. Mas não seja formal como se estivesse no púlpito. Solenidade com leveza, empatia e emoção.

2. Eleve a todos com a oração do Pai Nosso – Por ser uma oração conhecida por todos os cristãos, as pessoas ficarão à vontade de rezar junto e se sentirão parte da celebração. É muito importante que a família enlutada sinta que as pessoas se importam e oram por ela.

3. Incentive a participação ativa – Peça a gentileza aos presentes de colocar ao alcance dos olhos um objeto da pessoa falecida (aliança, caneca favorita, fotografia, vara de pescar, bíblia, hinário, vinil, celular), qualquer objeto que faça lembrar de quem partiu, simbolizando a presença dela ali. Isso funciona como símbolo do corpo da pessoa. Enfatize que elas devem deixar os objetos visíveis e ao alcance das mãos, mas não diga ainda o porquê. Este passo se aplica especialmente para os familiares.

4. Cante uma canção ou um hino – A música é um poderoso meio de sensibilizar as pessoas e um instrumento perfeito para um momento de reflexão. Escolha o hino ou a canção favorita do finado, mesmo que a letra ou o ritmo não sejam apropriados para um momento fúnebre. Lembre-se que estamos trazendo a pessoa morta à memória dos vivos.

5. Faça um pausa dramático-reflexiva – Leia o Salmo 39.4 e 5 – “Mostra-me, Senhor, o fim da minha vida e o número dos meus dias, para que eu saiba quão frágil sou. Deste aos meus dias o comprimento de um palmo; a duração da minha vida é nada diante de ti. De fato, o homem não passa de um sopro.” Aí temos um texto que fala por si mesmo e dispensa comentários. Convide os participantes a refletirem na sua própria finitude. Tipo uma prece silenciosa por uns trinta segundos. Atenção! Ainda não é hora da homilia.

6. Leia um responso à pausa dramático-reflexiva – Recite uma poesia ou um Salmo sobre a condição humana, sobre a morte que habita todos nós. Apenas recite, não teça comentários, pois o momento é estético auditivo. Eu escolhi um poema de Mario Quintana:

Minha Morte Nasceu… (Mário Quintana para Moysés Vellinho)

Minha Morte nasceu quando eu nasci
Despertou, balbuciou, cresceu comigo
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi

Já não tem aquele jeito antigo
De rir que, ai de mim, também perdi
Mas inda agora a estou sentindo aqui
Grave e boa a escutar o que lhe digo

Tu que és minha doce prometida
Nem sei quando serão nossas bodas
Se hoje mesmo…ou no fim de longa vida

E as horas lá se vão loucas ou tristes
Mas é tão bom em meio as horas todas
Pensar em ti, saber que tu existes

7. Entoe mais uma canção ou hino – Agora a música deve ser de celebração da vida que o ente querido viveu e que os vivos estão vivendo, sob a graça do Senhor. Este é um instante especial porque valoriza a trajetória de vida do morto e se desprende do momento da morte em si.

8. Proclame uma homilia – Faça uma breve reflexão sobre a morte ou o morrer. Use uma homilia que é um sermão curto. Eu gosto muito do Salmo 116.15 que diz: “Dolorosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos.”. Eu falaria sobre a dor que Deus sente ao juntar-se a nós para prantear a morte da pessoa querida. Você, claro, pode optar por alguma outra palavra mais apropriada que o Espírito soprar sobre você. Mantenha-se aberto e resista a tentação de repetir fórmulas consagradas.

9. Sepulte o morto simbolicamente – Peça para os participantes do funeral pegarem o objeto da pessoa falecida nas mãos e que fiquem segurando. Dê oportunidade para que duas ou três pessoas falem algo que o falecido ensinou ou disse que transformou a vida deles, e que eles trazem consigo na memória e no coração. Depois, incentive todos a fazerem o mesmo simultaneamente ou após o ato fúnebre. Agora, oriente cada um a guardar objeto que tem nas mãos como se tivessem guardando na sepultura o corpo da pessoa morta. Isso são ações simbólicas, para usar a terminologia de um gênero literário profético.

10. Declare a entrega – Diga uma declaração de entrega do finado ao seu lugar de descanso. Talvez você possa usar a palavra de Eclesiastes 12.7 que diz: “E o pó volte à terra, como era, e o espírito volte a Deus, que o deu.

11. Faça uma oração de despedida – Ore, brevemente, pedindo ao Senhor que receba a pessoa falecida em sua morada eterna.

12. Despeça os participantes – A despedida da cerimônia é a oportunidade para frisar que a separação é temporária. É temporária entre nós que estamos vivos, porque pela graça do Senhor poderemos nos reunir em breve. E é temporária com aqueles que morreram, porque pela ressurreição do Senhor um dia todos seremos reunidos no Reino do Pai Celeste.

Não é preciso dizer que é necessário tempo para planejar uma liturgia, pois você deve providenciar os meios virtuais do encontro; convidar as pessoas; reunir os músicos etc. Por isso, separe tempo para elaborar o ato fúnebre.

Como eu disse anteriormente, esta liturgia para um ofício fúnebre virtual é uma sugestão e você pode utilizar as dicas como quiser. Modifique! Inove! Crie! Deixe o Espírito do Altíssimo conduzir você na elaboração da liturgia fúnebre.

Como palavra final, creio que uma liturgia como esta que propus cumpre as principais funções dos ritos, em geral, e do rito fúnebre, em particular, que são: dar ordem ao caos gerado pelo desaparecimento de alguém querido; emprestar significado ao evento da perda; expressar por gestos o que não se pode dizer por palavras; auxiliar o fortalecimento de vínculos, agora internos, dos que perderam alguém com este alguém perdido; e, contextualizar a experiência da perda com a comunidade, que presta suporte aos que estão de luto.

Faça download da Liturgia para Ofício Fúnebre Virtual aqui

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jrcristofani

José Roberto Cristofani - Casado com Cida Crema Cristofani. Pai, Pastor, Professor de Teologia. Educador, Escritor, Especialista em Educação a Distância e Doutor em Antigo Testamento.